O Golpe de 64, 60 anos depois: abandono do Memórias Reveladas mostra que luta por memória, verdade e justiça ainda precisa avançar no Brasil
Ano VI – Edição 271
Em 1º de abril de 1964, os setores mais conservadores da sociedade civil brasileira uniram-se às Forças Armadas e derrubaram o então presidente João Goulart, chefe de um governo democrático cujas medidas eram aprovadas por quase 70% da população brasileira. O golpe, um dos capítulos mais nefastos da história do Brasil, empurrou o país para uma ditadura que durou 21 anos. E que foi marcada por extrema violência.
Desde 1985, quando os militares finalmente deixaram o poder, o Brasil lida com o rescaldo deste período de terror e infâmia. De conservadores a progressistas, não falta quem defenda que é tempo de esquecer o que passou, que o país deve olhar para frente, que o passado já não importa, que é tempo de paz. Não falta quem considere que a essência golpista de vários setores importantes da sociedade brasileira nada tem a ver com o golpe que agora completa 60 anos.
Esta percepção – que se opõe à necessária e ainda urgente luta por memória, verdade e justiça – parece ter chegado ao seu ápice neste 2024, ano simbólico em que se rememoram as seis décadas completas desde o início da ditadura. Talvez nunca antes na história deste país, a história da ditadura tenha sido tratada com tamanho desdém pelo Estado brasileiro como nos últimos anos.
Os arquivos não têm passado incólume a esse processo. E o maior exemplo está naquele que é, até hoje, o melhor trabalho de uma instituição arquivística pública sobre o tema, o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), do Arquivo Nacional.
Conhecido como Memórias Reveladas, a ideia do Centro teve origem em 2005, no âmbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Na mesma época – início da metade final do primeiro governo Lula – o tema do recolhimento e da abertura dos arquivos da repressão ocupava espaço privilegiado na agenda pública. Como lembra Inez Stampa, professora e hoje ex-chefe de divisão do Memórias Reveladas, o momento era propício para a pauta. Em 2009, a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, ela própria ex-presa política, referendou a criação do Centro, considerado um marco para o “fortalecimento de uma política pública de valorização do patrimônio histórico documental e de aperfeiçoamento da cidadania e da democracia em nosso País”.
A partir de 2009, o Memórias Reveladas atuou ativamente na identificação de acervos reunidos pelos órgãos da repressão, sobretudo através de uma série de acordos de cooperação firmados entre a União e os Estados brasileiros. Por meio de projetos patrocinados por leis de incentivo, o Centro participou diretamente de ações de preservação de documentos produzidos pelas Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) em 13 Estados. Nos primeiros anos de sua atuação, a equipe chegou a contar com dez servidores, além de dois colegiados formados por especialistas no tema. Era um projeto estratégico do AN.
Entretanto, o êxito das forças conservadoras – primeiro em 2016, com a destituição de Dilma Rousseff e, mais tarde, em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro – levaram o Memórias Reveladas a uma condição de penúria nestes últimos anos. A partir de 2019, principalmente, o Centro passou a receber cada vez menos aportes do Arquivo Nacional, tendo sido deslocado da Direção-Geral do órgão em 2022, na última reforma organizacional promovida pela gestão bolsonarista – e mantida até hoje. O Conselho Consultivo e a Comissão de Altos Estudos foram desmanteladas neste período. No final de 2022, o Centro foi reduzido a apenas três servidores.
A eleição de Lula – ex-sindicalista que chegou a ser preso na ditadura e que representa, há décadas, a principal liderança progressista no país – reacendeu a esperança de que os anos de descaso com a memória da ditadura e com o Memórias Reveladas pudessem ter chegado ao fim. Não foi, contudo, o que aconteceu.
Em fevereiro deste ano, a Associação de Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP) publicou uma contundente nota sobre o abandono do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil. Dias depois, o colunista Lauro Jardim, d’O Globo, também tratou sobre o tema. Além de enfatizar a paralisia dos projetos levados a cabo pelo Memórias Reveladas, o colunista chamou atenção para acefalia da divisão. Inez Stampa, que durante anos liderou o Centro, e se aposentou em 2024, até hoje não foi substituída. No sítio do Memórias Reveladas, segue a informação de que ela continua a frente da divisão – mesmo que não seja mais servidora do AN.
De acordo com Inez, desde 2023 ela vinha tentando a nomeação de um substituto, para que pudesse tratar de problemas de saúde, mas não foi atendida pela gestão do Arquivo Nacional. Da mesma forma, todos os projetos propostos pela equipe do Memórias Reveladas em 2023 ficaram parados, “sem andamento ou mesmo resposta por parte da administração do órgão”. Conforme Inez Stampa, dentre os projetos parados, estão “a proposta de um seminário internacional que deveria ocorrer agora, entre março e abril de 2024”, e a “retomada da digitalização dos acervos das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), reconhecidos como patrimônio mundial da humanidade pelo programa Memória do Mundo, da Unesco”.
Neste início de semana, marcado pelo 60º aniversário do golpe, o Memórias Reveladas voltou à pauta, desta vez através de reportagem publicada pelo Brasil de Fato – e na qual servidores do AN reafirmam o posicionamento da atual direção do órgão sobre o esvaziamento e a paralisia nas atividades do Centro. Segundo a reportagem, hoje a equipe do Memórias Reveladas está reduzida a seu menor número desde 2009 – apenas duas pessoas – e não há servidor formalmente responsável pela chefia. O banco de dados, um dos principais projetos do Centro, tem sido mantido a duras penas pelos poucos servidores que restaram. Já o prêmio Memórias Reveladas – criado para dar visibilidade a pesquisas sobre o tema – parece ter sido abandonado. E, diferentemente de outros anos, não há eventos programados pelo Arquivo Nacional para rememorar mais uma efeméride do golpe. Vale lembrar que, por decisão de Lula, estão vetadas as manifestações do governo sobre o tema.
Marcada por uma visão profundamente distorcida sobre o papel das instituições arquivísticas públicas, a atual direção do Arquivo Nacional declara, como sempre, que a realidade é outra. Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Coordenadoria de Comunicação do AN disse que o órgão tem “empreendido ações para reconstrução e fortalecimento do Memórias Reveladas”. Só não disse quais. E nem porque os servidores que trabalham diretamente no Centro nada sabem sobre elas.
A direção também destacou a nomeação da historiadora Gabrielle Abreu, ocorrida em 1º de março, como “mais uma demonstração do compromisso da gestão com a temática”, já que “a nova diretora é reconhecida pesquisadora sobre a história da ditadura militar brasileira”. Abreu graduou-se em história em 2019 e defendeu uma dissertação de mestrado sobre o tema em 2021. Ela deu uma entrevista à Agência Brasil, vinculada ao Governo, neste final de semana. Falou de projetos já realizados em gestões anteriores e disse que, agora, o Memórias Reveladas ganhou “nova musculatura”. O que isso quer dizer, na prática, não se sabe.
Na sexta (29), a Coordenação de Comunicação do Arquivo Nacional emitiu uma nota intitulada “Fortalecimento e reconstrução do Memórias Reveladas”. O comunicado insiste que “a direção-geral do Arquivo Nacional tem empreendido ações para reconstrução e fortalecimento” do Centro. No Instagram, a instituição também se manifestou a respeito – e citou o Memórias Reveladas. A postagem, entretanto, veio acompanhada de um erro básico que mostra o descaso da direção-geral da instituição com o tema: ao contrário do que diz o texto publicado, o acervo do AN não conta com documentos do Cisa e do Cenimar, órgãos da repressão. Como informa o próprio Memórias Reveladas, tais fundos nunca puderam ser recolhidos pela instituição.
Entrevistada pelo Giro, Inez Stampa, anteriormente responsável pelo Memórias Relevadas, acredita que “a direção-geral tem o direito de estabelecer suas prioridades, e é perfeitamente normal que o Memórias Reveladas não esteja entre elas. Mas não tem justificativa para ter paralisado todas as atividades”.
Enquanto nada de efetivo acontece, o Memórias Reveladas, projeto outrora estratégico para o AN e de grande visibilidade como exemplo de política pública de memória, desidrata sem perspectivas de futuro. Uma perda para a democracia brasileira e uma derrota para os arquivos do país.
#SNGA2024
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BRASIL
O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) voltou a se reunir na última quarta (27). Além da criação de dois GTs (um sobre gestão de documentos em sistemas informatizados e outro sobre terminologia) e da apresentação do relatório final da Câmara Técnica Consultiva sobre arquivos de arquitetura, a reunião foi marcada por um novo enfrentamento entre presidência e os conselheiros. Na reunião anterior, a maioria do plenário havia deliberado que caberia ao Conarq a indicação do maior número de membros da Comissão Organizadora da II Conferência Nacional de Arquivos. A presidência queria que a maior parte das indicações fosse feita pelo Arquivo Nacional. Depois que a Consultoria Jurídica do Ministério da Gestão e da Inovação disse não ver empecilhos na proposta aprovada pelo plenário, a presidente do Conselho decidiu submeter ambas as opções à ministra, contrariando a vontade da maioria dos conselheiros.
A atitude da Presidência do Conarq levou o Fórum de Ensino e Pesquisa em Arquivologia (FEPARQ), o Fórum Nacional das Associações de Arquivologia (FNArq) e a seção do Rio da Associação Nacional de História (Anpuh-Rio) a publicarem uma nota conjunta. No documento, as entidades expressaram “veemente repúdio ao autoritarismo manifestado pela Presidência do Conselho Nacional de Arquivos”. A nota também alerta para “os riscos de não haver tempo adequado para a seleção dos novos conselheiros do CONARQ”, que deve acontecer até setembro.
A sede do Arquivo Público do Estado da Bahia vai a leilão mais uma vez. O pregão deve acontecer na próxima segunda (8) e é o terceiro em menos de um ano. O lance inicial é de R$ 7,3 milhões. Atualmente, o prédio é ocupado por mais de 7 mil metros lineares de documentos datados desde o século XVI.
O Ministério da Cultura do Brasil, através da Fundação Biblioteca Nacional, e a Biblioteca Apostólica do Vaticano celebraram um um acordo de cooperação técnica para o desenvolvimento de projetos conjuntos que de preservação de acervos e o fomento da educação, ciência e cultura.
O Governo de Alagoas transformou os muros do Arquivo Público em uma enorme tela artística de pintura contemporânea.
E amanhã é dia de eleição na Associação dos Arquivistas do Rio Grande do Sul.
AGENDA
3 de abril, em Petrópolis (RJ): mesa-redonda “60 anos do Golpe Civil-Militar e seu contexto em Petrópolis”.
6, 13, 20 e 27 de abril, em Mogi das Cruzes (SP): Curso de Introdução à Leitura Paleográfica - Transcrição de Documentos Históricos do Século XIX.
E saiu a programação do X Congresso Nacional de Arquivologia.
OPORTUNIDADES
Concurso para a Prefeitura Municipal de Brotas (SP).
#PABEMNÚMEROS
MUNDO
Na Argentina, as Equipes de Levantamento e Análise (Equipos de Relevamiento y Análisis – ERyA) de arquivos, criadas em 2010 para investigar os processos de crimes contra a humanidade, vão deixar de funcionar. Dez dos treze trabalhadores que compunham os grupos de trabalho foram demitidos pelo governo de Javier Milei.
Ainda na Argentina, a Universidad Nacional de San Luís (UNSL) abriu seus arquivos vinculados à última ditadura vivida no país.
No Paraguai, morreu Martín Almada, líder da defesa dos direitos humanos e principal personagem na descoberta dos chamados “Arquivos do Terror” sobre os crimes da ditadura no país.
A magia dos arquivos: em 1770, um pedreiro encontrou um documento escondido nas vigas da casa do escritor William Shakespeare. Durante séculos, acreditou-se que o documento havia sido escrito pelo pai do autor de Romeu e Julieta. Agora, uma pesquisa mostrou que, na verdade, o manuscrito é da irmã de Shakespeare.
O diretor de cinema Martin Scorsese doou para a Universidade do Colorado mais de 50 caixas com milhares de fitas VHS que ele próprio gravou da TV desde 1980. Ao todo, são mais de 4 mil títulos.
PARA LER COM CALMA
Ada Lovelace: a primeira programadora da história (via Espaço do Conhecimento UFMG).
A “degustação” do mais novo número de Archivamos.
Archivo Nacional de la Memória, patrimônio de toda a sociedade (em espanhol, via Crónica).
Famílias famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou 'escondido' nos arquivos do IBGE (via BBC News Brasil).
PARA VER COM CALMA
Aula inaugural do Programa de Pós Graduação em Gestão de Documentos e Governança Arquivística (via Rede UEPB).