As dimensões da tragédia: até hoje RS não sabe quantos arquivos foram atingidos pelas enchentes de maio
Giro da Arquivo #326 | Especial RS, Um ano depois (Parte 1)
Um ano depois da maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul, nenhum dado é capaz de estimar com precisão a quantidade de arquivos afetados pelas inundações no estado. A enchente que atingiu a mais meridional das unidades federativas brasileiras alcançou 96% dos municípios gaúchos e quase 90% dos locais de trabalho existentes. Os arquivos – públicos e privados, de organizações e de pessoas – não passaram incólumes à destruição.
A totalidade dos acervos afetados é desconhecida. No caso dos arquivos de órgãos do Executivo Federal, uma nota técnica publicada pelo Arquivo Nacional um mês depois da enchente, indica que pelo menos 15 instituições federais foram atingidas. À época, o AN estimou que aproximadamente 78 mil caixas de documentos haviam sido danificadas. Quase um ano depois, a instituição afirma que a estimativa inicial foi subestimada: no total, o Arquivo Nacional identificou 23 órgãos federais afetados e um total de 131 mil caixas de documentos que sofreram algum tipo de dano.
No Judiciário, também não existem números precisos. De acordo com o portal DW, só no principal arquivo do Tribunal Regional do Trabalho, em Porto Alegre, mais de três milhões de processos judiciais sofreram algum tipo de dano decorrente da inundação – um terço do total de dossiês existentes no local. Uma boa parte dos documentos atingidos integra o Programa Memória do Mundo, da UNESCO. Tratam-se de registros de valor inestimável, portanto. Até hoje, o Poder Judiciário não publicou um informe ou relatório sobre a totalidade de arquivos atingidos em suas unidades – tanto na capital, quanto em suas sedes no interior.
No âmbito dos arquivos do Executivo estadual, os números dão conta de apenas parte da tragédia. Em julho do ano passado, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul publicou aquela que é, até hoje, a mais completa nota técnica sobre os acervos afetados pela enchente. À época, o APERS identificou que ao menos 25 secretarias ou entidades estaduais haviam sido atingidas pelas inundações, um total de 100 mil caixas com documentos arquivísticos. A nota sinalizou, entretanto, que ainda não havia certeza sobre o alcance da tragédia em arquivos de suma importância para o estado, como aqueles produzidos e acumulados pela Brigada Militar. Quase um ano depois da publicação, a quantidade total de acervos afetados até hoje não foi divulgada.
Se a situação nos âmbitos federal e estadual é de incerteza quanto às dimensões da tragédia no RS, o quadro nos municípios é ainda pior. Replicando um problema brasileiro, a maior parte das cidades gaúchas não conta com instituição arquivística pública, o que dificulta ainda mais qualquer tipo de controle e ação coordenada para a identificação e recuperação dos arquivos atingidos. Órgão central do Sistema Nacional de Arquivos – que também é integrado pelos arquivos municipais –, o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) até hoje não tomou qualquer tipo de atitude a respeito do tema.
Como resultado, todos os dias aparecem denúncias e relatos sobre a perda e o descarte indevido de documentos vinculados a Prefeituras e Câmaras Municipais gaúchas. Um dos casos mais recentes ocorreu em plena capital do estado. No final de março, a agência Matinal denunciou o descarte ilegal de parte do acervo da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV). De acordo com a denúncia, a Prefeitura de Porto Alegre constatou que houve perda de 40% das mais de 210 mil pastas contendo projetos de obras realizadas na cidade. Depois da repercussão negativa do caso, o Ministério Público foi acionado e exigiu que a Prefeitura apresentasse maiores explicações a respeito do episódio. Na semana passada, os relatórios preliminares da investigação foram apresentados pelo MPRS, que deve exigir que a Prefeitura de Porto Alegre tome providências em relação ao episódio.
O caso de Porto Alegre é emblemático, mas não único. Como outras grandes cidades do estado, a capital conta com organismos que, na lei, são responsáveis por promover políticas de gestão, preservação e acesso aos arquivos produzidos no âmbito municipal. A enchente mostrou, entretanto, que estes organismos tem enfrentado as mais diversas dificuldades para executar suas funções. No caso de Porto Alegre, em dezembro do ano passado o Giro da Arquivo contatou a Coordenação de Gestão Documental do município. A CDG informou que dezenove unidades do Executivo municipal foram afetadas pelas enchentes e que o Comitê Gerencial do Sistema de Arquivos de Porto Alegre (SIARQ/POA) fez uma série de recomendações aos órgãos atingidos. A Coordenadoria admitiu, entretanto, não dispor do número ou do volume de documentos atingidos ou descartados. E também disse desconhecer “atividades de recuperação de acervos” ou “projetos específicos para esse objetivo”. Sobre o acervo da antiga SMOV, a Coordenação de Gestão de Documentos de Porto Alegre afirmou ter recomendado a recuperação dos documentos.
Para além dos danos nos arquivos dos órgãos públicos dos mais diferentes âmbitos e poderes, os prejuízos dos cidadãos gaúchos também se prolongam sobre os arquivos cartoriais, basilares para a concretização de uma série de direitos. De acordo com a Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul (Anoreg), 27 cartórios de notas e registros e 43 unidades de serviço foram atingidas pelas enchentes. Não há, contudo, uma estimativa sobre o total de documentos afetados nestes locais.
Como o Giro da Arquivo analisou nos últimos meses, a tragédia no sul evidenciou tanto a falta de políticas arquivísticas, quanto as fragilidades do Sistema Nacional de Arquivos. Desprovidos de dados básicos sobre o volume, a localização e as condições dos acervos atingidos, as instituições arquivísticas brasileiras foram levadas a atuar às cegas, geralmente sem qualquer certeza sobre as ações a serem prioridades. Como mostraremos nas próximas semanas, a falta de políticas tem sido uma dificuldade a mais no processo de recuperação dos arquivos gaúchos.
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🔰 Brasil
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📆 Agenda & Oportunidades
Hoje, 17h, online: Acolhimento a Refugiados por Instituições Religiosas no Brasil: Processos Documentais e Psicossociais.
Até 08/05: Prorrogado o prazo para propostas de Lightning Talks para a Semana Internacional de Arquivos de 2025 (ICA).
Até 30/05, Pelotas, RS: Submissão de resumo para o Seminário Internacional “Colônias entre Estâncias” e XVII Seminário Nacional das comunidades teuto-brasileiras.
Até 30/05: Inscrições para o concurso Dusting Off Archives 2025.
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Colômbia: Documentos confidenciais de negociações de paz estão prestes a apodrecer: eles pertencem à Unidade Nacional de Proteção, dizem os críticos. (Red+ Notícias)
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