Acervos presidenciais: o silêncio da Comissão Memória dos Presidentes da República e a omissão da arquivologia brasileira
Giro da Arquivo - Edição Especial #01
por Renato de Mattos
No próximo dia 6 de março, o escândalo envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e as joias sauditas completa um ano. Além das circunstâncias atípicas em que os objetos ingressaram no país, outro aspecto foi amplamente discutido nos meses que se seguiram: os itens que integram os acervos presidenciais são de propriedade dos titulares dos cargos ou pertencem ao patrimônio brasileiro?
O debate suscitado pelo episódio concluiu aquilo que há tempos pesquisadores vêm alertando: a legislação vigente que cuida dos acervos privados presidenciais é ambígua e lacunar quando se trata da definição da natureza jurídica dos acervos de presidentes. Embora a Lei nº 8.394/1991 e o Decreto nº 4.344/2002 reconheçam os acervos privados presidenciais como parte integrante do “patrimônio cultural brasileiro”, ainda hoje permanece indefinido o limite legal entre os documentos públicos e os documentos privados de um presidente da República. De acordo com o referido Decreto, os documentos privados dos presidentes são todos os “conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais”. Já os documentos públicos seriam todos aqueles de “natureza arquivística produzidos e recebidos pelos presidentes da República, no exercício dos seus mandatos”, cuja destinação prevista é o Arquivo Nacional.
Sobre a definição de “documento de natureza arquivística” proposta pelo texto legal, podemos indagar: quais seriam os documentos privados de um presidente da República em exercício? Seriam todos aqueles que não se enquadram no art. 15 do Decreto nº 4.073/2002, que define como públicos os conjuntos de documentos “produzidos e recebidos por agentes do Poder Público, no exercício de seu cargo ou função ou deles decorrente”? Se esta for a baliza, como considerar os documentos provenientes do Gabinete Pessoal do presidente, tais como planos de viagem, agendas, roteiros de cerimônia, registros sonoros, textuais e audiovisuais de discursos, viagens e audiências?
Especificamente em relação aos presentes ofertados aos presidentes da República, a imprecisão é ainda mais evidente. De acordo com o Decreto nº 4.344/2002, são considerados públicos os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado" do presidente da República ao exterior, ou quando das "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado" de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil. De partida, cabe a provocação: por que os documentos arquivísticos eventualmente recebidos nos mesmos eventos oficiais mencionados não são caraterizados como “públicos”? Seria a distinção entre documento arquivístico, museológico e bibliográfico pautada meramente nas características físicas dos documentos, como suporte e formato?
Infelizmente, essas e tantas outras questões, que emergem da análise da legislação pertinente ao tema, foram discutidas de forma insuficiente por pesquisadores e profissionais da área. E, menos ainda, pelos integrantes da Comissão Memória dos Presidentes da República. Criada em 1991 pela Lei nº 8.394, a Comissão é responsável pela coordenação do sistema de acervos documentais privados dos presidentes da República e é formada por representantes do Departamento de Documentação Histórica da Presidência da República e pelos titulares do Arquivo Nacional, Fundação Biblioteca Nacional, Museu da República e [o] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na condição de “membros natos”, além de “personalidades de notório saber e experiência em arquivologia, biblioteconomia e documentação em geral, designados por decreto do Presidente da República”. Aqui uma questão se mostra imperiosa: será que a Arquivologia brasileira é devidamente representada nesse colegiado?
O “silêncio eloquente” da Comissão Memória dos Presidentes da República nos últimos anos assume contornos mais graves quando voltamos à questão dos presentes presidenciais. Em 2016, no contexto da Operação Lava Jato, policiais federais e auditores da Receita Federal investigavam a possível apropriação de presentes que pertenciam ao patrimônio público pelo então ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. O estopim da operação foi nada mais nada menos do que uma foto – tirada de contexto, como se verificou na sequência - em que Lula aparecia ao lado de um crucifixo supostamente ofertado ao governo federal durante o mandato do ex-presidente Itamar e que, desde então, pertencia ao acervo público da União. Mesmo depois de confirmada a fraude, a fake news foi amplamente difundida pelos órgãos de imprensa, chegando mesmo a ser compartilhada pelos procuradores do Ministério Público, conforme revelado pelas mensagens que vieram a público no âmbito da chamada “Vaza Jato”.
A comoção que o episódio gerou na opinião pública levou o Senado Federal a requerer uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre os “bens patrimoniais da presidência da República”. Entre os meses de maio e julho de 2016, os auditores do TCU investigaram o caso e concluíram que o disposto no Decreto nº 4.344 era objeto de interpretações dúbias entre os servidores do Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal da Presidência da República (DDH/PR), os quais, muitas das vezes, não recebiam informações precisas do séquito de funcionários civis e militares que acompanhavam o presidente em suas viagens. Assim, sem o detalhamento sobre se a circunstância da oferta do presente era pública ou privada, o exato cumprimento do Decreto era prejudicado. A partir dessa constatação, os ministros do TCU publicaram o Acórdão nº 2.255/2016, em que ficou estipulado que fossem incorporados ao “patrimônio da União os documentos bibliográficos e museológicos recebidos pelos presidentes da República nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das visitas oficiais ou viagens de estado ao exterior, ou quando das visitas oficiais ou viagens de estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil, excluídos apenas os itens de natureza perecível e personalíssima (vestuário, perfumes etc.)”.
Além do emprego de expressões vagas como “natureza perecível” e “personalíssima”, outro aspecto chama a atenção na decisão do TCU: em 2019, em resposta às recomendações feitas pelo Conselho Institucional do Ministério Público Federal para que a devassa nos acervos presidenciais se estendesse a todos os chefes do Poder Executivo desde a promulgação da Lei nº 8.394/1991, o voto do ministro relator Walton Rodrigues alega que, em função de “dificuldades temporais e inerentes à singularidade dos presentes tratados”, as determinações “abrangeram apenas os ex-Presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff”. Em seu voto, o ministro decidiu pelo encerramento do processo, pois naquele momento sua continuidade não era “oportuna” por conta dos princípios da “racionalidade administrativa e da economia processual”.
Em abril de 2017, o senador Humberto Costa (PT-PE) apresentou o Projeto de Lei nº 112 com o propósito de “eliminar ambiguidades e contradições” da Lei nº 8.394/1991 a partir da ampliação das atribuições da Comissão Memória dos Presidentes. Não obstante, em dezembro de 2022, o PL foi arquivado sem que o texto fosse discutido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Mais recentemente, a deputada federal Tábata Amaral (PSB-SP) apresentou o Projeto de Lei nº 6.228/2023, em que procura dirimir os problemas identificados pelo TCU em 2016. O texto – que atualmente se encontra sob análise nas comissões de Administração e Serviço Público; Cultura; e Constituição e Justiça e de Cidadania – apresenta alguns avanços, dentre eles a inclusão dos acervos dos ex-presidentes nas mesmas regras e a liberação do acesso aos acervos para consultas com fins de trabalho jornalístico – cumpre lembrar que ainda hoje vigoram os termos do art. 15 da Lei nº 8.394/1991, que determina que as consultas sejam restritas aos pesquisadores dedicados a estudos de caráter técnico ou acadêmico, mediante solicitação fundamentada, permanecendo sujeitos às normas e às recomendações estabelecidas pelo responsável pela custódia. Ademais, a deputada propõe criar instrumentos para que a União possa expropriar os itens vendidos sem a sua expressa manifestação prévia, além da controversa definição de “acervo privado” dada ao conjunto de itens “personalíssimos ou de consumo direto” recebidos pelos presidentes e que não ultrapassem o valor de cinco salários mínimos.
Com efeito, observa-se que o recente ressurgimento do debate após a polêmica das joias sauditas demonstra como a discussão, apesar de sua evidente relevância para a sociedade, permanece à mercê de escândalos políticos e denúncias “isoladas” de eventuais desvios de ex-presidentes. No entanto, assim como no episódio envolvendo Lula e Dilma Rousseff, a Comissão Memória dos Presidentes da República permaneceu alheia às possíveis práticas de crimes envolvendo os desvios dos presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro entre 2021 e 2022, e, ao que tudo indica, permanece indiferente neste exato momento em que tramita o Projeto de Lei da deputada Tabata Amaral.
Esperamos que a nova Diretoria de Documentação Histórica, comandada por Claudio Soares Rocha, assim como os demais “membros natos” da Comissão, notadamente a atual titular do Arquivo Nacional, tomem a frente no debate, atuando junto ao Poder Legislativo para que, durante a tramitação das novas regras ora em discussão, sejam realizadas audiências com a participação da comunidade arquivística, conforme prevê a Lei nº 8.394/1991. Não nos resta dúvida acerca da importância das contribuições de profissionais e acadêmicos do campo arquivístico nos debates sobre o tema. Seja qual for a abordagem empregada em resposta ao problema da demarcação dos limites entre o público e o privado dos acervos presidenciais, ela certamente pressupõe a mobilização do repertório teórico-metodológico da área.
Renato de Mattos é professor adjunto do Departamento de Ciência da Informação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense. Atualmente, desenvolve a pesquisa "Arquivos presidenciais brasileiros no Rio de Janeiro: inventário do patrimônio documental e difusão do potencial histórico-cultural", financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) no âmbito do programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE). É também integrante do Honório – Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas Arquivísticas.
PARA SABER MAIS
Joias da Arábia: o público e o privado nas ações de Bolsonaro (via Nexo Jornal).
NA ACADEMIA
"Acervos presidenciais brasileiros: entre o público e o privado", I Seminário Documentos Fora do Lugar, 2023 (Fundação Casa de José Américo).
NA MÍDIA
Proposta muda regulamentação da gestão dos acervos presidenciais (Agência Câmara).
De Sarney a Lula, o acervo presidencial já rendeu muitas dores de cabeça (Veja).
Imagens inéditas mostram joias recebidas pelo governo Bolsonaro passando por perícia (TV Globo).