Qualquer arquivista sabe que o recolhimento é uma função arquivística básica – associada a diversas outras – que constitui um dos pilares fundamentais do funcionamento de uma instituição arquivística moderna. A Lei de Arquivos veio garantir autoridade arquivística aos arquivos públicos para tal e iniciar a ruptura com o modelo de arquivo histórico tradicional. É estranho, portanto, que o Arquivo Nacional não tenha o recolhimento como política e prática institucionalmente consolidadas.
O Arquivo Nacional não recolheu documentos na sede no Rio de Janeiro em 2024, operacionalizou apenas um recolhimento em sua unidade no Distrito Federal e carece dos elementos básicos que constituem uma política de recolhimento.
Indagamos algumas questões via Lei de Acesso à Informação (Processo nº 18002.013586/2024-0) em 05 de dezembro de 2024 ao Ministério da Gestão e da Inovação. Um delas foi:
“Quantos recolhimentos de documentos digitais e não digitais o Arquivo Nacional realizou para guarda permanente em 2024 na sede e da unidade do Distrito Federal? Favor especificar a procedência/órgãos de origem desses recolhimentos, data dos respectivos recolhimentos, respectivos atos legais, quantidades de documentos (quantidades de documentos para os documentos textuais analógicos) recolhidos, recolhimentos destinados ao Arquivo Nacional no Rio de Janeiro e no Distrito Federal”.
A resposta obtida em 26/12/24 foi:
“Não houve recolhimento de acervo oriundo de órgão ou entidade do Poder Executivo federal no ano de 2024.”
No que se refere à unidade do AN em Brasilia:
“Foi efetuado um recolhimento com 662 caixas-arquivo do acervo do Ministério da Saúde (MS) no ano de 2024, cujo Termo de Recolhimento foi assinado em 25 de novembro de 2024.”
Considerando-se o tamanho padrão médio de uma caixa de arquivo (35X14X24cm), 662 caixas corresponderiam aproximadamente a 92,68 metros lineares.
Ou seja, isso é tudo que o AN conseguiu praticar em termos de recolhimento em 2024.
Vale lembrar que em 2023, realizamos o mesmo levantamento e constatamos que o Arquivo Nacional NÃO RECOLHEU documentos na sede no RJ, apenas no DF: 209,75 metros lineares, alguns questionários e livros, procedentes de quatro ministérios. Portanto, quantitativamente, houve uma diminuição em relação a 2023.
A outra questão encaminhada na mesma solicitação pela LAI foi sobre a PREVISÃO DE RECOLHIMENTOS para 2025:
“Quais os recolhimentos ao Arquivo Nacional no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, previstos para 2025? Especificar a procedência/órgãos de origem desses recolhimentos. Se não há uma previsão de recolhimentos em 2025, quais os motivos?”
A resposta em relação à sede do AN no Rio de Janeiro:
“Para o ano de 2025, há previsão de recolhimento do Departamento de Polícia Federal (DPF), Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e Ministério da Saúde (MS)”.
Não foram fornecidos dados quantitativos sobre esses recolhimentos, o que em termos de planejamento é, no mínimo, inusitado. Como prever recolhimentos sobre os quais não se tem informações quantitativas?
No que se refere à unidade do DF:
“Para o ano de 2025, há previsão de recolhimento de aproximadamente 400 caixas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), 350 caixas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e 200 caixas do Ministério da Saúde (MS).
Tendo em conta os parâmetros de caixa de arquivo citados anteriormente, 662 caixas corresponderiam aproximadamente a 133 metros lineares.
É 2025 e o Arquivo Nacional aparentemente não tem (já teve?) uma POLÍTICA DE RECOLHIMENTO de documentos de valor permanente, o que colide com o art. 18 da Lei nº 8.159: "Compete ao AN a gestão e o recolhimento dos documentos produzidos e recebidos pelo Poder Executivo Federal...". Sem recolhimentos o AN volta a ser um arquivo histórico do século XIX.
O que explica esse cenário? O AN tem um mapeamento dos acervos permanentes existentes em órgãos do Executivo Federal passíveis de recolhimento ou desconhece a realidade arquivística dos ministérios? Optou por outro "modelo de preservação e guarda" desses documentos permanentes? Se optou, qual é modelo? Ou simplesmente renunciou silenciosamente à função de recolher enquanto tenta chamar para seu raio de ação acervos que extrapolam sua função junto ao Poder Executivo Federal? É essa a “inovação” que o AN desenvolve como Secretaria do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI).
Na falta de um projeto institucional, a indagação parece ter que ser direcionada ao MGI: qual o projeto da tecnoburocracia do Ministério para o Arquivo Nacional? Ao contrário do esperado no início deste governo, a instituição tem sido subtraída das suas frágeis conquistas alcançadas desde a sua modernização no bojo da democratização do país.
Essas informações obtidas pela LAI não constam no site do Arquivo Nacional. Arquivos públicos são reserva de transparência do Estado e não de opacidade.
* José Maria Jardim é professor titular de Arquivologia aposentado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.